Por Afonso Peche Filho
A agricultura regenerativa, enquanto paradigma de restauração funcional dos ecossistemas produtivos, exige uma leitura sensível das estações do ano e suas dinâmicas ecológicas. No contexto tropical, o outono se revela como um dos períodos mais estratégicos para o início e consolidação de práticas que integram produção, conservação e regeneração da paisagem agrícola. Com o recuo das chuvas intensas do verão e a presença de precipitações mais brandas, abre-se uma janela ideal para o manejo de transição, marcado por intervenções estruturantes no solo e no sistema de uso da terra.
1. Outono: a estação de reorganização ecológica.
Nas regiões tropicais, o verão é geralmente caracterizado por chuvas intensas, altas temperaturas e vigoroso crescimento vegetal. Esse período, embora altamente produtivo, também é o mais agressivo em termos de impacto hidrológico, sobretudo em solos descobertos ou mal manejados. A erosão, o carreamento de sedimentos e nutrientes, o assoreamento de corpos d’água e a compactação superficial são efeitos recorrentes de um sistema agrícola que opera dissociado da conservação do solo e da água.
O outono, por sua vez, marca uma transição climática e ecológica. A diminuição da intensidade das chuvas, a manutenção de uma umidade residual significativa no solo e o declínio das temperaturas criam as condições ideais para intervenções com menor risco de erosão e maior eficiência de resposta no solo. Este ambiente climático moderado favorece a reorganização do perfil do solo, a correção de passivos físicos e químicos e a instalação de práticas regenerativas duradouras.
2. Correção e sistematização: preparando o solo para a regeneração.
Um dos fundamentos da agricultura regenerativa tropical é o respeito à estrutura natural e à biologia ativa do solo. No entanto, muitas áreas encontram-se marcadas por anos de degradação, erosão laminar, trilhas de máquinas, carreadores abandonados e sulcos de enxurradas, que formam verdadeiras “cicatrizes de ocupação”. Essas marcas comprometem o funcionamento hidrológico e a capacidade de regeneração biológica do solo.
O outono permite a realização de mobilizações corretivas localizadas, voltadas à sistematização do terreno, como nivelamento, eliminação de sulcos erosivos e reforma de antigas áreas compactadas. Também é o momento ideal para a incorporação de corretivos agrícolas (como calcário e gesso agrícola), de forma que a reestruturação física venha acompanhada de recondicionamento químico, respeitando os princípios do perfil cultural e da base ativa do solo tropical.
3. Início de sistemas conservacionistas: cobertura e plantio direto.
Outro marco da transição de outono é a instalação dos primeiros componentes do sistema plantio direto de alta qualidade, com foco regenerativo. A semeadura de culturas de cobertura de inverno, leguminosas, gramíneas ou consórcios diversificados, é facilitada pelas condições de umidade e temperatura ainda favoráveis à germinação e estabelecimento. Essa vegetação protege a superfície do solo contra o impacto das gotas de chuva, reduz a amplitude térmica, ativa o sistema radicular e promove a reorganização da microbiota do solo.
Ao estimular a formação precoce da palhada, o agricultor estabelece o alicerce ecológico que sustentará o cultivo de verão com menor dependência de insumos e maior resiliência frente a estresses climáticos. O solo coberto e biologicamente ativo é o grande diferencial do plantio direto regenerativo em relação ao modelo convencional, que, mesmo mantendo palhada superficial, muitas vezes negligencia a qualidade do sistema radicular e das conexões simbióticas com o solo.
4. Readequação hídrica em pastagens degradadas.
Nas áreas de pastagem, o outono representa uma janela crítica de transformação. Os efeitos cumulativos do manejo tradicional – como superpastejo, ausência de rotação, queima e ausência de conservação do solo – conduzem à perda da capacidade de infiltração e à compactação progressiva do solo, tornando essas áreas altamente vulneráveis às chuvas do verão seguinte.
É justamente no outono que se pode intervir com mais segurança e eficiência para reverter esse quadro de degradação hídrica. A implantação de práticas mecânicas regenerativas, como o terraceamento, curvas de nível, bacias de contenção e caixas de captação, permite reorganizar o fluxo das águas e favorecer sua infiltração, reduzindo a velocidade de escoamento superficial e promovendo a recarga do lençol freático. Essas estruturas físicas, se bem executadas, passam a integrar de forma funcional a paisagem agrícola.
Além disso, a semeadura de gramíneas adaptadas ao manejo regenerativo – como capins com raízes profundas e de crescimento agressivo – pode ser realizada com grande sucesso no outono. Ainda há umidade suficiente para a germinação, e o crescimento inicial se dá em um ambiente menos competitivo, preparando o solo para enfrentar o verão seguinte com melhor cobertura e estabilidade.
5. A base ecológica do plantio direto regenerativo.
O sistema plantio direto não é apenas uma técnica de semeadura sobre palha. Na abordagem regenerativa, ele se transforma em um sistema integrado de conservação, regeneração e produção, no qual a qualidade da cobertura do solo e a complexidade funcional das raízes são os verdadeiros protagonistas.
Nesse contexto, o outono permite que o produtor estruture, com antecedência e consciência, todos os parâmetros ecológicos necessários ao sucesso do sistema:
– Correção e preparo do perfil cultural do solo, com foco em estrutura física, mineralização equilibrada e ausência de impedimentos mecânicos;
– Diversificação de espécies na cobertura vegetal, priorizando culturas que fixem nitrogênio, solubilizem nutrientes e deixem resíduos ricos em carbono decomposto lentamente;
– Estímulo à biologia do solo, com inoculação de microrganismos benéficos, aplicação de bioinsumos e uso de compostos orgânicos maturados;
– Instalação de estruturas de infiltração, contenção e dissipação de água, garantindo o funcionamento hidrológico do sistema e protegendo o solo nos eventos extremos.
Ao final do outono, a propriedade já terá realizado grande parte da reorganização ecológica de base, necessária à transição de uma agricultura extrativista para um modelo regenerativo, produtivo e resiliente.
6. Considerações finais: o outono como símbolo de recomeço.
Na natureza, o outono é a estação das sementes que caem, das folhas que fertilizam, da água que penetra e das raízes que se aprofundam. É, portanto, uma estação de reinício subterrâneo, quando a vida se reorganiza para renascer com mais força. Levar esse simbolismo para o manejo da propriedade tropical é reconhecer que a regeneração começa pelo invisível, pelas estruturas fundamentais do solo, da água e das relações biológicas que sustentam toda a produtividade agrícola.
Ao adotar o outono como período estratégico para a implantação da agricultura regenerativa, o produtor dá o primeiro passo em direção a uma nova lógica agrícola: menos baseada em extrair, mais centrada em restaurar, conservar e construir. E essa mudança começa com decisões técnicas corretas, mas se consolida com uma mudança profunda na forma de perceber e se relacionar com a terra.
* Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC.