Por anos, o agronegócio brasileiro evoluiu em conectividade, automação e agricultura de precisão. Mas enquanto drones, sensores e telemetria tomavam conta do campo, um risco básico, quase primitivo, continuou aberto: a falta de comprovação efetiva de propriedade e procedência das máquinas e implementos agrícolas.
E essa vulnerabilidade alimentou um mercado paralelo que cresce no silêncio.
Conversamos com produtores, revendas, seguradoras, cooperativas, peritos e especialistas em segurança patrimonial. E também com Daniela H. Confortin, porta-voz da plataforma Registro de Bens Brasil (RBB), iniciativa criada para enfrentar de forma inédita esse problema.
O que encontramos é um cenário preocupante, e uma solução que começa a redesenhar as regras do jogo.

Como criminosos enganam quem compra e quem vende
O esquema é mais simples, e mais destrutivo do que parece. E se desdobra em várias modalidades.
– Falsificação de documentos: criminosos apresentam notas fiscais clonadas, contratos adulterados ou laudos forjados, dando aparência de legalidade a máquinas que não existem ou que foram roubadas. Como não há base nacional de verificação, o comprador não tem como confirmar.
– Venda de máquinas inexistentes: esse é o golpe mais comum: publicam um anúncio atraente, pedem sinal ou pagamento integral “para garantir o negócio”, e desaparecem. A máquina nunca existiu.
– Máquinas com problemas ocultos: implementos com motor comprometido, peças desgastadas ou vícios graves são maquiados para parecerem prontos para uso. Sem histórico técnico confiável, o produtor compra o problema — pagando como se fosse solução.
– Identidade falsa: perfis falsos, empresas de fachada e documentação adulterada formam o pacote perfeito para sumir após o pagamento.
– Leilões fraudulentos: sites falsos ou leiloeiras clonadas oferecem tratores, plantadeiras e colheitadeiras com preços irresistíveis. O comprador paga… e nunca recebe nada.
O prejuízo oculto que ninguém gosta de admitir
O impacto é gigantesco, mas pouco divulgado. Estimativas consolidadas apontam que o agro brasileiro perde cerca de R$ 1,2 bilhão ao ano com golpes, fraudes, furtos e máquinas irregulares.
Bancos, cooperativas e seguradoras acumulam prejuízos com notas adulteradas, máquinas inexistentes e proprietários que não conseguem comprovar posse.
Produtores evitam falar porque têm vergonha de admitir que caíram no golpe. Revendas evitam porque manchariam a imagem. Bancos e seguradoras não expõem porque geraria insegurança.
O resultado? O mercado paralelo cresce na sombra e o prejuízo coletivo aumenta. Segundo Daniela Confortin, “o setor avançou em tecnologia no campo, mas não avançou na proteção do patrimônio. E isso abriu uma brecha enorme para o crime”.

O problema estrutural: ninguém sabe quem é o verdadeiro dono
Revendas não conseguem checar origem. Produtores não têm como verificar histórico. Bancos não conseguem garantir a autenticidade do bem financiado. Seguradoras gastam fortunas em perícias para validar sinistros.
Não existe, até hoje, um sistema nacional que diga:
– Se aquela máquina existe;
– Quem foi o primeiro dono;
– Quem foi o segundo;
– Se há alienação, restrição ou sinistro;
– Se o número de série confere;
– Se os documentos são reais;
É justamente nesse vazio que os golpistas prosperam.
A plataforma que promete virar o jogo
Para Jeferson Gnoatto, diretor de negócios da RBB, o problema nunca foi pequeno, só estava invisível. “Hoje o produtor compra uma máquina de alto valor sem ter como checar, de forma técnica, se aquilo é legítimo. Ele confia no papel, mas o papel já não acompanha o nível do golpe”, afirma.
A plataforma combina camadas que antes não conversavam: cofre digital de documentos, balcão público de consulta, rastreamento da cadeia de donos, auditoria humana especializada, integração com bases públicas e privadas e registro imutável em blockchain.
O resultado é simples de explicar e poderoso na prática: qualquer pessoa pode verificar se o bem é verdadeiro, se tem restrição, se não é roubado, se o número de série confere e se o histórico faz sentido.
Segundo Jeferson, essa é justamente a virada que o agro precisava. “Pela primeira vez, o Brasil tem o equivalente a um ‘Renavam das máquinas’. Algo que mostra quando a máquina nasceu, quem foram os donos e se todos os documentos são reais.”
Jeferson é categórico: “Quadrilha só prospera onde existe desorganização. Quando você coloca rastreabilidade, auditoria e blockchain na mesma mesa, o espaço para o golpe simplesmente desaparece.”
Para o produtor, a mudança é decisiva. A RBB cria um ambiente de segurança total para compra, venda, seguro e financiamento. O proprietário passa a ter prova real de posse, documentos validados, histórico inviolável e rastreamento completo do bem por toda a vida útil, da emissão da nota até o descarte.
Segurança total
A adoção do RBB ganha ainda mais relevância quando se considera um problema crescente no campo: o roubo de máquinas e equipamentos de alto valor. Diferentemente dos rastreadores via satélite, que podem ser facilmente desativados, o sistema do Registro de Bens do Brasil atua de forma inversa. Ele ativa o alerta no momento em que alguém tenta dar “ar de legalidade” ao equipamento furtado.

Na prática, explica Jeferson, funciona assim: se uma máquina, implemento, equipamento ou ferramenta registrada desaparecer, qualquer tentativa de consulta ou novo registro, em qualquer lugar do país, faz o sistema identificar automaticamente a localização do indivíduo que está tentando fraudar a operação. “Essa informação segue diretamente para as autoridades policiais, facilitando a recuperação do bem. Um mecanismo que transforma cada tentativa de golpe em uma oportunidade de rastreamento preciso”.
Esse modelo se apoia no arcabouço da Lei de Garantias do Brasil, marco histórico que estrutura relações de crédito e também relações comerciais, ao estabelecer quatro pilares fundamentais para qualquer bem:
– Identidade: equivalente ao RG, Renavam ou matrícula;
– Origem: informações pretéritas do bem, como ocorre com o histórico de licenciamento de um veículo;
– Rastreamento: um extrato completo da situação atual, pendências, localização e movimentações;
– Publicidade: a capacidade de terceiros consultarem gravames, alienações e outras informações relevantes.
Nos veículos, isso é feito pelo Detran. Nos imóveis, pelos cartórios. E agora, no universo agroindustrial e de construção, essas mesmas camadas de segurança passam a existir para máquinas, equipamentos, implementos e ferramentas, graças ao RBB.
É exatamente esse “Renavan das máquinas” que empresas como a Liderança começam a visualizar na prática. Para Jeferson, a possibilidade de registrar e rastrear itens como empilhadeiras e elevadores de silo muda completamente o jogo. O que antes era vulnerável, agora passa a ter identidade, histórico e proteção jurídica, elementos que o mercado sempre precisou, mas nunca teve de forma estruturada.
“A verdade é que o Brasil precisava desse sistema há décadas. O produtor sempre ficou vulnerável, os compradores sempre dependeram da confiança e as instituições tiveram que operar às cegas”, reforça Jeferson. “Agora, a regra muda. Quem é sério ganha proteção. Quem tenta fraudar perde espaço.”
Os números mostram o tamanho da transformação. Com a rastreabilidade completa, a previsão é que os prejuízos com roubo, golpe e fraude caiam entre 40 e 70% nos próximos três anos.
Para Jeferson, não se trata apenas de tecnologia, mas de uma mudança estrutural no mercado. “A RBB nasceu para proteger patrimônio, credibilidade e o futuro do Agro. É isso que estamos entregando ao país.”
Como funciona na prática, e por que muda tudo
1. Antes de comprar o comprador consulta a máquina pela RBB e descobre:
– Se o vendedor é realmente o dono;
– Se o equipamento tem restrições;
– Se existe boletim de furto;
– Se o número de série confere;
– Qual é o histórico de proprietários;
– Golpistas perdem a principal arma: o anonimato.
2. Para os produtores, documentação organizada, prova real de propriedade, histórico inviolável e proteção contra receptação.
3. Para as revendas, segurança na compra de usados, prevenção de entrada de máquinas adulteradas e mais credibilidade nas negociações.
4. Para seguradoras, redução drástica de sinistros falsos e facilitação de perícias.
5. Para bancos, garantias reais, redução de fraudes em financiamentos e menos inadimplência.
6. Para o agro como um todo, transparência, rastreabilidade e valorização dos bens.
Rastreabilidade que protege o produtor

A adoção de sistemas de rastreabilidade vem ganhando força no setor de implementos agrícolas, especialmente diante do avanço de fraudes, furtos e revendas irregulares. Entre as empresas que decidiram transformar esse cenário está a Pramarc, que incorporou o Registro de Bens do Brasil (RBB) como ferramenta estratégica de proteção, transparência e valorização de seus equipamentos.
Segundo Fábio Magnani, gerente da Pramarc, a decisão não nasceu de teoria, mas da dura experiência acumulada ao longo de mais de duas décadas de atuação. “Já tivemos máquinas roubadas e nunca recuperadas. Sem registro, sem rastreamento… só uma nota fiscal emitida para um laranja. Era um cenário muito vulnerável”, explica.
Ele conta que, durante a apresentação do RBB, ficou evidente que a plataforma preenchia exatamente essa lacuna histórica: a falta de um sistema nacional capaz de registrar a origem e acompanhar o ciclo de vida de cada implemento.
Mudança imediata
Para a empresa, a mudança foi imediata. Hoje, todos os equipamentos saem de fábrica já registrados no nome do cliente. “É quase como entregar a chave do carro com o documento no painel: o produtor já sai protegido”, afirma.
E quando o implemento é revendido, o novo comprador também pode atualizar o registro, criando uma linha do tempo contínua do bem. “Isso facilita ações judiciais, dá transparência e permite comprovar a originalidade da máquina.”
Essa originalidade, aliás, é um diferencial competitivo importante em um mercado regional com mais de 40 concorrentes. Magnani destaca um ponto sensível: a presença de empresas que vendem equipamentos reformados ou montados com peças de procedência duvidosa como se fossem novos.
“O registro nos dá um argumento forte: o cliente tem garantia de que a máquina foi realmente fabricada aqui, do zero. É um certificado de segurança e autenticidade”, afirma.
Além disso, os benefícios práticos são imediatos para o produtor. “Ele leva para casa algo legítimo, rastreado e sem risco de ter comprado um equipamento de origem incerta. Isso muda o jogo”, diz.
O impacto, no entanto, vai além da segurança individual. Para Magnani, sistemas como o RBB devem se tornar padrão obrigatório no futuro e por motivos sólidos. “Hoje essas máquinas circulam sem controle nenhum. Faz um negócio aqui, outro ali, e a máquina simplesmente some. Não existe obrigatoriedade de registro. A rastreabilidade vai reduzir prejuízos, trazer controle e proteger quem trabalha sério.”
Ele reforça que o potencial do RBB não se limita ao agro. Setores como náutica, obras e outros segmentos que lidam com bens de alto valor também podem ser transformados por um modelo que registra, identifica e acompanha toda a trajetória de cada item. “É uma plataforma que vem para somar, para o produtor, para as empresas e para o Brasil”, conclui.
Nova realidade
A adoção do Registro de Bens do Brasil (RBB) se consolidou como uma solução real, tanto para reduzir prejuízos quanto para moralizar o mercado de usados.
Quem vive isso na prática é Evandro Engelman, engenheiro mecânico da Liderança Instalação e Manutenção, empresa especializada na montagem de silos, secadores e outros equipamentos de armazenagem.
“Trabalhamos apenas com a montagem, mas o volume de materiais que precisamos mobilizar é enorme. E, para ser sincero, já tivemos prejuízos pesados”, relata. Ele explica que as apertadeiras, ferramentas pequenas, porém valiosas, são as campeãs de furto.
Pequenas demais para serem facilmente controladas, valiosas o suficiente para atrair criminosos. “Já tivemos container arrombado e um prejuízo próximo de R$100 mil. E essas ferramentas acabam sendo revendidas em marketplaces ou para outras empreiteiras sem que ninguém desconfie.”
A falta de rastreabilidade alimentava o ciclo. Era fácil furtar, fácil revender e praticamente impossível comprovar origem. Foi justamente esse cenário que levou a empresa a adotar o RBB como estratégia de proteção. “Com o registro, começamos a mapear nossas ferramentas e criar um histórico. Também iniciamos uma conscientização com outras empreiteiras, como a Kepler Weber, para evitar a compra de equipamentos de origem duvidosa e não fomentar o furto”, afirma Evandro.
Transações legítimas
A rastreabilidade também abriu espaço para organizar as transações legítimas entre empreiteiras. Equipamentos muito comercializados, como empilhadeiras, elevadores de silos e máquinas de limpeza, passaram a ter identificação clara.
Ele destaca, por exemplo, um problema recorrente no setor: a impossibilidade de registrar empilhadeiras no Renagro. “Elas ficam sem código, sem rastreabilidade nenhuma. A gente comprou uma empilhadeira nova e, com o RBB, finalmente conseguimos cadastrá-la. Antes, pesquisando usadas, víamos preços muito diferentes e não sabíamos se eram furtadas ou não.”
A ferramenta também passou a ser apresentada a clientes, produtores rurais, cooperativas, donos de armazéns, que frequentemente compram e vendem máquinas sem garantia de procedência. “Mostramos o RBB como solução para eles também. Muitos compram equipamentos usados sem saber se o vendedor é o verdadeiro dono. O registro começa a eliminar essas fraudes.”
E os riscos não são teóricos. Evandro lembra um caso recente envolvendo outra empreiteira: “Para subir um silo, usamos de 30 a 40 elevadores de silo, que são macacos hidráulicos específicos, custando aproximadamente R$ 600 mil. Uma empreiteira comprou 30 equipamentos ‘novos’ de um fornecedor desconhecido, confiando só na foto. Depois descobriram que tinham sido repintados e eram, na verdade, máquinas furtadas no nordeste.”
Situações como essa continuam comuns no setor, e reforçam por que sistemas de rastreamento estão se tornando indispensáveis. Para empresas como a Liderança, o RBB não é apenas uma camada de segurança: é uma ferramenta que começa a mudar a cultura do mercado, trazendo confiança para quem compra, quem vende e quem constrói.
Um mercado bilionário finalmente protegido
Segundo modelagens feitas com base em sistemas internacionais de rastreabilidade, a implementação plena da RBB pode reduzir furtos, golpes em anúncios, fraudes em financiamentos, sinistros falsos e em 40 a 70% em apenas três anos.
Se confirmada, essa queda representa bilhões economizados — e segurança inédita para produtores e toda a cadeia.
O que está em jogo a partir de agora
A investigação deixa claro. O agro brasileiro se modernizou no campo, mas não na proteção do patrimônio. A falta de rastreabilidade deu força aos criminosos. E a documentação dispersa criou um ambiente perfeito para fraudes.
A RBB surge não como “mais uma tecnologia”, mas como a peça que faltava para fechar a principal brecha de segurança do setor. E, pela primeira vez, parece haver um caminho concreto para virar o jogo.
