Afonso Peche Filho*.
Na agricultura tropical brasileira, há muito sabemos sobre os impactos negativos das práticas convencionais: a intensa exposição do solo, a perda acelerada da biodiversidade, que inclui desde organismos visíveis até a microvida essencial, e o impacto cumulativo sobre os recursos hídricos, sobretudo os pequenos cursos d’água. Esses problemas não são novidade para agricultores, técnicos, pesquisadores, dirigentes públicos e profissionais das ciências agrárias. O que chama a atenção é a permanência desse quadro, mantido não pela ignorância, mas por algo mais profundo e perigoso: a compreensão conivente.
Compreensão conivente significa saber que algo está errado, entender que gera danos e que não é sustentável, mas, ainda assim, seguir permitindo, aceitando ou simplesmente não agindo para transformar. Essa cumplicidade silenciosa atravessa todos os níveis da agricultura brasileira: das grandes fazendas exportadoras às pequenas propriedades e à agricultura familiar. Muitas vezes, os agricultores familiares conhecem bem os riscos da queima de resíduos, da gradagem repetitiva, do uso excessivo de agroquímicos e da retirada da vegetação nas margens de córregos. Sabem que essas práticas desgastam o solo, empobrecem a biodiversidade e comprometem a água. Contudo, permanecem presos a elas, seja por falta de apoio técnico, por medo de perder a produção no curto prazo ou porque, culturalmente, “sempre foi feito assim”.
A compreensão conivente também envolve dirigentes e profissionais das ciências agrárias, que, conhecendo os dados e os alertas científicos, muitas vezes não priorizam políticas públicas de apoio à transição agroecológica nem fortalecem programas que deem suporte real ao produtor no campo. Em vez disso, alimenta-se um modelo tecnocrático centrado em soluções fáceis, como fertilizantes solúveis, defensivos químicos e pacotes tecnológicos, que oferecem respostas rápidas, mas cobram um preço altíssimo em termos de sustentabilidade a longo prazo.
Os efeitos acumulados dessa postura são profundos e alarmantes. Solos que antes eram vivos e resilientes tornam-se compactados, pobres em matéria orgânica e dependentes de insumos externos. Sistemas agrícolas que antes se equilibravam naturalmente tornam-se mais vulneráveis a pragas, doenças e variações climáticas. Pequenos riachos, antes fontes de vida e biodiversidade, sofrem com assoreamento, contaminação e seca. E, além do impacto local, cresce a pressão internacional sobre os produtos agrícolas brasileiros, cada vez mais associados à degradação ambiental.
Romper com essa conivência silenciosa exige coragem, responsabilidade e ação coordenada. Agricultores precisam reconhecer que manter práticas degradantes não é uma fatalidade, mas uma escolha que pode ser mudada. Profissionais das ciências agrárias precisam assumir um papel mais ativo, levando conhecimento e alternativas viáveis ao campo. Dirigentes públicos devem priorizar políticas que incentivem práticas agroecológicas e ofereçam apoio técnico e econômico àqueles que desejam mudar. Leigos e consumidores também têm papel importante ao valorizar produtos provenientes de sistemas sustentáveis e ao cobrar responsabilidade social e ambiental em toda a cadeia produtiva.
A compreensão conivente não pode mais ser a marca da agricultura brasileira. Precisamos transformá-la em consciência crítica e, principalmente, em ação. Conhecer os problemas não basta: é preciso agir, em todos os níveis, para construir uma agricultura que seja produtiva, sim, mas também justa, viva e capaz de cuidar das futuras gerações.
* Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC.